Artistas brasileiros

As câmeras portáteis destinadas ao uso doméstico possibilitaram, por um lado, o acesso a formas de registro através de uma tecnologia mais simples e, por outro, para alguns artistas, a chance de contato e experimentação da linguagem cinematográfica. Além disso, muitos desses registros passariam a servir de fonte para a criação de novas obras.  


Artistas brasileiros das mais diferentes áreas também têm o hábito de registrar seu cotidiano entre a família e os amigos, captando tanto momentos de descontração quanto de criação artística, ações individuais e coletivas que acabam por retratar parte da história do Brasil. 

 

Neste programa, apresentamos quatro filmes que abordam o universo doméstico de artistas brasileiros de diferentes maneiras: seja através de filmagens do ambiente familiar ou de eventos que somente um filme doméstico é capaz de documentar, revelando imagens raras de personagens únicos da vida brasileira. Este é o caso da filmagem que o arquiteto e urbanista Lúcio Costa fez da família Melo Franco de Andrade, onde aparece o futuro cineasta Joaquim Pedro de Andrade, ainda criança, na virada para a década de 1940, e das imagens descontraídas do pai do cineasta capixaba Orlando Bomfim, netto, o advogado, jornalista e militante do Partido Comunista Brasileiro Orlando Bomfim Jr., desaparecido durante a ditadura militar brasileira. Já as imagens realizadas por Robinson Roberto em 1972 retratam Caetano Veloso e outras pessoas, como Rodrigo Veloso, seu irmão, e o poeta Wally Salomão, na festa de Santo Amaro da Purificação, logo após o cantor voltar do exílio. Não se tem notícia de que existam outras imagens deste evento, o que atesta a possibilidade de o filme doméstico ir além de muitos registros oficiais. As filmagens domésticas também podem servir de matéria-prima para novas criações, como é o caso de Steps, de Paula Gaitán. O filme foi feito exclusivamente para a Mostra a partir do material em Super-8 captado durante sua temporada com a família em Sintra, Portugal, em 1981. Foi com essa câmera que a cineasta iniciou sua trajetória como diretora de cinema, e já é possível perceber a visão impressionista do real que a acompanhará em seus filmes seguintes, com destaque para a relação da luz com as paisagens e os objetos, que se incluem no universo do registro doméstico tanto quanto as pessoas filmadas.

Filmes

Família Melo Franco de Andrade

 

Filme doméstico com imagens da família do advogado, escritor e jornalista Rodrigo Melo Franco de Andrade captadas pelo arquiteto e urbanista Lúcio Costa, amigo da família. As filmagens foram realizadas provavelmente na virada da década de 1930 para 1940, na cidade do Rio de Janeiro. No início do filme, Graciema Melo Franco de Andrade, esposa de Rodrigo, acompanha e brinca com seus dois filhos: o futuro cineasta Joaquim Pedro de Andrade e Clara, sua irmã mais nova. Nas imagens seguintes, vemos Joaquim Pedro e Clara ao lado do irmão mais velho Rodrigo Luiz, acompanhados de sua mãe e de Julieta Modesto Guimarães (Leleta), esposa de Lúcio Costa. Imagens das meninas Clara e Maria Elisa Costa,  filha de  Lúcio e Leleta, brincando na areia da praia, com o Pão de Açúcar ao fundo. Ainda na praia, vemos os irmãos Rodrigo Luiz e Joaquim Pedro caminhando pela areia, e Rodrigo e Graciema observando os filhos. Na sequência, há imagens de Joaquim Pedro caminhando em um jardim, acompanhado de Rodrigo Luiz em alguns planos. Clara, Rodrigo e Graciema também são vistos no jardim, juntos com a família de Lúcio Costa. Em diversos momentos, alguns deles interagem com a câmera, com poses e sorrisos. 

[Moscou, Muriqui] 

 

 

 

 

O filme registra a chegada do advogado e jornalista capixaba Orlando da Silva Rosa Bomfim Júnior e de outras pessoas ainda não identificadas ao Rio de Janeiro, após uma viagem a Moscou, na URSS, em meados da década de 1960. Orlando, integrante do Partido Comunista Brasileiro (PCB), filmou a maior parte das imagens, que mostram seu reencontro com a família em sua casa de veraneio, em Muriqui, distrito de Mangaratiba, na região metropolitana do Rio de Janeiro. Algumas cenas foram provavelmente filmadas por seu filho, o futuro cineasta Orlando Bomfim, netto. No filme, vemos a família e os amigos reunidos em um dia de sol na praia. Orlando entraria para a clandestinidade alguns anos depois, com o golpe militar de 1964, e seria dado como desaparecido em 8 de outubro de 1975, a partir de um telefonema anônimo para a família. Seu nome consta no relatório da Comissão Nacional da Verdade entre os mortos e desaparecidos políticos da Ditadura Militar brasileira, e em sua homenagem foi nomeada a “Comissão Estadual da Memória e Verdade Orlando Bonfim”, instalada em 25 de março de 2013 e concluída em 2016, no Espírito Santo. Este filme integra a coleção particular de Super-8 de Orlando Bomfim, netto, composta por 16 rolos de filmes reunidos pelo projeto Acervo Capixaba, da Pique-Bandeira Filmes. 

Volta de Caetano Veloso do exílio

 

 

 

Registros feitos em película Super-8 do retorno de Caetano Veloso à cidade de Santo Amaro, na Bahia, após o período de exílio do artista em Londres, na Inglaterra. Filmadas no verão de 1972 por Robinson Roberto, as imagens mostram Caetano em meio à multidão que ocupa as ruas da cidade para a celebração da Festa de Nossa Senhora da Purificação. No início do filme, em uma tomada noturna, vemos a fachada da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Purificação decorada com luzes. Caetano observa a movimentação de pessoas enquanto toma algumas imagens com uma câmera Super-8. Há diversos planos das pessoas de Santo Amaro celebrando, dançando e acompanhando um carro de som e um trio elétrico, em festa. Entre os presentes, estão o poeta Wally Salomão, compartilhando uma garrafa de Coca-Cola com um amigo, e Dona Canô, mãe de Caetano, vista rapidamente no final do filme, sambando, e acompanhada de uma mulher e uma criança. Vemos também o cortejo das baianas, que lavam o adro da Igreja Matriz com vasos de flores e água de cheiro. Há imagens de homens cantando e tocando instrumentos e de inúmeras crianças brincando e se banhando na fonte luminosa da praça em frente à igreja. O filme tem edição de Marilusa Barreto e Robinson Roberto.

Steps, de Paula Gaitán

 

 

 

Filmagens realizadas pela artista plástica, fotógrafa, poeta e cineasta Paula Gaitán durante a temporada vivida com sua família na cidade de Sintra, em Portugal, no ano de 1981. Com a câmera utilizada para essas filmagens, Paula teve as primeiras experiências em sua trajetória como diretora de cinema. Trabalhando com película Super-8, a diretora conta que buscou uma visão impressionista do real, com grande ênfase na relação da luz com as paisagens e os objetos, que se incluem no universo do registro doméstico tanto quanto as pessoas filmadas. Ao longo de todo o filme, há especial destaque para as árvores, os animais, a arquitetura, as paisagens rural e urbana, ainda que transeuntes e sua família também estejam presentes. Os habitantes da cidade são vistos em diversos planos, com destaque para os filmados desde o interior de um vagão de trem. A cineasta também filma a si própria, refletida no espelho, além de mostrar seu trabalho como fotógrafa, onde aparece em alguns autorretratos. A montagem respeitou as imagens de cada rolo, na mesma ordem em que foram captadas pela câmera durante as filmagens. A música foi composta por Lucas Borgia Rossetti, que, em colaboração com Paula, também concebeu o desenho sonoro do filme. O designer gráfico Thiago Lacaz é o responsável pela concepção visual dos créditos finais.

2021, cor, sonoro, 16′42″ 

1972, cor, silencioso, 13′14″ 

c. 1960, pb, silencioso, 4′05″

c. 1940, cor e pb, silencioso, 8′14″