Curadoria CONVIDADA*

Entre Eros e Tânatos: pulsões da vida em família

Lila Foster

 

Casa, família, infância, lazer, rituais, amor, felicidade. Essas são algumas palavras-chave que, a princípio, descrevem o cinema doméstico, esse conjunto de imagens em movimento dedicado aos ritos familiares. Guardar, rememorar, relembrar os bons tempos, preservar da inevitável passagem do tempo os rostos, os gestos, as roupas, os espaços compartilhados. Muitas vezes filmadas por câmeras amadoras, tais imagens são facilmente encontradas em arquivos pessoais, coleções de arquivos públicos e cinematecas.
 
E é essa feição da imagem + sensação de felicidade + marca indelével da vida do filme de família que se sedimentou como um imaginário sobre essa produção que vai dos Lumière aos reels do Instagram, imagens rodadas em 35 mm, 16 mm, Super-8, 8 mm, vídeo, digital, celular. Talvez o gênero mais onipresente na história da imagem em movimento, tudo isso se traduz em uma estética já amplamente codificada. A câmera que treme, a textura especial das imagens, o olhar direto para a câmera, a comunicação entre quem filma e é filmado, a repetição dos mesmos rituais – Natal, aniversários, o primeiro carro, as férias de verão, os primeiros passos do bebê, os diversos partos registrados por mãos nervosas –, uma estética incorporada e retrabalhada das mais diversas maneiras na história do cinema e da cultura visual.
 
Se é a pulsão de vida e o desejo de preservá-la através da imagem que se sobressai desse enorme manancial de imagens, o território do cinema doméstico e da representação da família é vasto e multifacetado, assim como o diálogo com o gênero. A família, como todos sabem, também é um terreno nos quais habitam sentimentos intensos, situados entre Eros, a pulsão que preserva a vida, e a energia destrutiva de Tânatos.

 

Na presente sessão procurei trazer diversos gestos artísticos e sentimentos vividos em família. Aqui temos a intensa felicidade de Dádiva e Era branco, mas também o embaraço e assombro diante do descompasso entre o que a família deseja e o que nós desejamos como em Avós e Trópico de Capricórnio; a narrativa com tons surrealistas de Iaia et Leni e a experimentação coreográfica de Dona Maria; o amor e o terror; a imagem bruta e a imagem retrabalhada; a retomada através do processo de montagem e novas tomadas, que mantêm vivas o interesse pelo trabalho com o suporte Super-8, tradicional formato amador. Imagens próximas e contrastantes, a imagem e o imaginário que envolvem a representação da família nunca expressam e significam uma coisa só. Fica aqui o convite para um recorte deste amplo universo.

 

* sessão com recursos de audiodescrição

Dona Maria, de Maria e Herbert Duschenes

 

 

"Em seu apartamento na Rua Silvia, na Bela Vista, em São Paulo, Maria cria coreografias com os objetos da casa". 

 

Maria Duschenes foi uma importante bailarina e coreógrafa, introdutora do Sistema Laban no Brasil. Seu marido, Herbert Duschenes, foi arquiteto, professor de história da arte e começou a filmar quando adquiriu uma câmera 8 mm para registrar o crescimento do seu primeiro filho. No decorrer dos anos, filmou uma série de atividades e se tornou um ativo cineasta amador. Dentre os diversos filmes rodados por Herbert, muitos foram dedicados à dança e aos trabalhos de Maria. Depois do nascimento do primeiro filho do casal, Maria contraiu poliomielite e perdeu parte de seus movimentos corporais. Neste período, o casal realizou experimentações cênicas e coreografias registradas com uma câmera 8 mm. Em Dona Maria, o trabalho e o amor compartilhado pelo casal permeia esse filme experimental brasileiro.

Dádiva, de Evelyn Santos 

 

 

 

 

"Dádiva, ato ou efeitos de dar espontaneamente algo de muito valor a alguém. Um presente imerecido."

 

Filmado durante a pandemia de COVID-19, em diversos suportes em película (Super-8, 16 mm e 35 mm) e revelado artesanalmente, Dádiva é um documentário experimental que tece um diálogo entre mãe e filha. Se valendo de arquivos diversos – sons domésticos, fotografias, depoimentos, trilha sonora –, o curta dá contornos para uma poética da infância e também do amor materno, permeado de dedicação e força.

Era branco, de Camila Battistetti

 

 

 

"... e branco nunca mais será."

 

Filme feito em família, essa animação em stop motion é o cinema como exercício lúdico: o brincar com o cinema e o brincar junto com a pequena Dinorah. Integrante do projeto Tomada Única, do Curta 8 – Festival Internacional de Cinema Super 8 de Curitiba. A filmagem em Super-8 foi realizada sem o recurso da edição posterior, com montagem feita no gatilho da câmera.
 

Iaia et Leni, de Eugenia Castello  

 

 

 

"A hora do chá em uma tarde de sol."

 

Esse momento singelo, no qual duas crianças se deliciam em um instante de plena liberdade, revela o sentimento que permeia a fantasia infantil de um mundo sem pais e mães. Um filme doméstico saído de um livro de fábulas, em que a infância é um espaço no qual se travam lutas. Rodado em película Super-8 dentro do projeto Tomada Única, do Curta 8 – Festival Internacional de Cinema Super 8 de Curitiba.

Avós, de Michael Wahrmann 

 

 

 

 

"Leo comemora seu décimo aniversário. De uma avó, ele ganha meias; da outra, cuecas. Do avô, Leo recebe uma velha câmera Super-8, através da qual relata a tentativa de trocar os presentes com as avós."

 

Leo descobre a câmera, a filmagem doméstica e a história dos seus avós. Um filme encenado, mas que tem na sua fatura os gestos do cinema doméstico, o curta também engendra um movimento comum partindo dos filmes de família: o atravessamento da História na vida cotidiana e a imagem em movimento como testemunho. 

2009, cor, sonoro, 11′48″

2010, cor, sonoro, 2′55″

2020, cor, sonoro, 6′10″

2020, cor, sonoro, 12′36″

Trópico de Capricórnio, de Juliana Antunes 

 

 

 

"A retomada dos vídeos familiares é a retomada de um caminho.”

 

A popularização do VHS trouxe novas camadas para as filmagens familiares. Com o acréscimo da captação sonora, a filmagem em vídeo permitiu o comentário, as falas, os sons que escapam, conformando assim uma documentação dos sons de cada época. O filme, em primeira pessoa, revê, reenquadra e remixa os descompassos entre a norma e o desejo.

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